Um homem célebre sem qualidades

Tempo de leitura: 3 minutos

O ano que termina foi excepcional para mim: dois livros publicados, dois outros prontos para serem lançados em 2018, três artigos publicados, congressos, viagens, novos amigos. Não posso reclamar que ele termine para mim um pouco melancólico. A melancolia me traz à memória o Pestana, “Ah! o senhor é que é o Pestana?”. Esse Pestana é o Pestana, compositor de polcas, personagem do conto Um homem célebre, de Machado de Assis, que começa exatamente pela frase que reproduzi anteriormente. Se ainda não leram esse conto, corram fazê-lo.

Um dos livros que lancei este ano chama-se O conto na sala de aula. Mas esse conto não está lá. Ainda bem! Não quis tomar para mim a responsabilidade de fazer a seleção dos contos do livro, pois ia acabar me dedurando. Ainda bem que Jessyca Pacheco, que escreveu o livro comigo e selecionou os contos que entraram nele, não escolheu Um homem célebre. Alívio para mim. Mas como um criminoso que não consegue conviver com o crime e precisa confessá-lo para purgar a culpa, senti uma comichão danada de confessar não um crime à moda de Raskolnikov, mas um pecadilho.

O Pestana de Um homem célebre é uma personagem que me encanta. Sinto uma total empatia por ele, por seu sofrimento silencioso, por sua incapacidade de transformar o que sente em música. Não que ele fique abúlico por causa disso, ele produz, e muito, mas algo diferente do que gostaria. Suas obras são muito bem aceitas por todos. Gostam muito do que ele compõe, tem o reconhecimento público, faz sucesso. Passou a ser um homem célebre. Vejam que a frase que inicia o conto, dita por um interlocutor já apresenta Pestana como alguém famoso.

Mas, como diz o Bruxo em outro conto célebre, temos duas almas: a exterior e a interior. O que as pessoas veem no Pestana é a sua alma exterior. Em O Espelho, a alma exterior eliminou a interior. Em Um homem célebre, isso não ocorre. Pestana sofre com esse reconhecimento da sua alma exterior, pois o que veem nele está longe de representar o que ele é. Sofre muito com isso. “Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como uma fonte perene”. Pestana casa-se com uma viúva de 27 anos e boa cantora, que morre dois anos após. Nem os momentos bons do casamento, nem a tristeza pela morte da esposa fazem com que aquilo que está recôndito se materialize, ganhe expressão.

É uma dor terrível passar a vida sem encontrar uma expressão material que dê forma ao sentido. Sem expressão, o sentido se torna um sem-sentido, uma massa amorfa,  Não achar cores, sons, formas, para mostrar a alma interior e ter a facilidade de encontrar a matéria para expressar algo que não corresponde ao verdadeiro sentido da vida é a tragédia a que está condenado Pestana.

Admiro Pestana porque, ao contrário do que estamos acostumados a ver por aí, ele nunca renunciou à busca da expressão para aquilo que ela julgava que era seu verdadeiro eu. Pestana tem consciência de sua incompletude. Os anti-Pestanas, ao contrário, preferem ficar com a celebridade, tão efêmera quanto a própria vida.

Acho que vou pular de Machado para Musil: o tijolaço de O homem sem qualidades está olhando para mim, dizendo: “Decifra-me ou devoro-te”.

Vale!

PS.: esta crônica, a última de um bom ano, é dedicada à Jessyca Pacheco, a quem agradeço por não ter lembrado desse conto para incluir no livro. Que em 2018 os sentidos verdadeiros encontrem sua materialização em expressões sublimes. Até lá!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.