A teoria dos atos de fala de John Austin e a linguagem jurídica

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Fui convidado pela Profa. Dra. Clarice Assalim a dar uma palestra para alunos da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Embora tenha formação em Direito, área em que cheguei a me formar, minha atuação profissional sempre esteve ligada à linguística e, mais recentemente, à semiótica discursiva. Que contribuição eu, como estudioso da linguagem e do discurso, poderia dar a estudantes de Direito? Imediatamente me ocorreu falar para eles sobre a linguagem em uso e me lembrei da Teoria dos atos de fala, de John Austin. Neste post, reproduzo um pouco do que falei no evento.

A teoria dos atos de fala (speech acts) foi formulada pelo filósofo inglês da Universidade de Harvard, John L. Austin. Em seu livro, publicado em 1962, How to do things with words (Como fazer coisas com palavras), que reúne doze conferências pronunciadas em 1955, Austin enuncia a hipótese de que dizer é também fazer, no sentido de que se tenta, pela linguagem, agir no comportamento do interlocutor.

Para o filósofo de Oxford, a linguagem não tem apenas uma função constatativa, ou seja, ela não é utilizada apenas para descrever o mundo das coisas e dos acontecimentos, ela também é uma forma de ação intencional. Ao usar a linguagem, não apenas dizemos alguma coisa, mas também fazemos algo. Para Austin, todo dizer é um fazer.

Como fazer coisas com as palavras, de John Austin (1911-1960)

Pelos atos de fala, realizamos uma ação semântica, ou seja, pela enunciação, o falante expressa conscientemente uma determinada significação. Além disso, essa ação semântica é produzida com determinada intenção (informar, ordenar, advertir, censurar, condenar, absolver, persuadir, ironizar, batizar, prometer etc.). Os atos de fala têm, portanto, propósitos pragmáticos.

As críticas que se fazem à teoria dos atos de fala de Austin ressaltam que ela privilegia apenas um dos polos do processo comunicativo: o falante. Realmente, para o reconhecimento das intenções do falante, é necessária a cooperação do ouvinte. Nesse sentido, as teorias que apresentam uma perspectiva interacional completam a teoria austiniana.

PAUL GRICE

O filósofo inglês Paul Grice enfatiza que, no processo de comunicação, deve prevalecer entre os interlocutores o Princípio da Cooperação, ou seja, para que a comunicação seja eficiente, os interlocutores devem agir segundo um conjunto de regras tácitas que ele denominou de Máximas da Conversação. Não basta, portanto, que o falante manifeste sua intenção, é necessário também que o ouvinte coopere e aja coordenadamente para identificar essa intenção.

Para entender a questão dos atos de fala, é preciso que perceber que a linguagem pode ser usada para narrar ou descrever algo e também para realizar algo. Certas expressões em determinados jogos, como truco, passo, bati, xeque, dobro, etc. não são usadas para descrever ou narrar o jogo, mas para expressar as ações que os jogadores realizam durante a partida, tanto que, ao pronunciá-las, altera-se o status do jogo. Dessa foram, devemos distinguir entre os atos de linguagem, aqueles que são usados para narrar ou descrever as ações e aqueles que são usados para realizar ações. Tome as sentenças a seguir.

(1) Pedro jurou dizer a verdade.

(2) Juro dizer a verdade.

Em (1), temos a narração de um fato; em (2), não se trata da narração de um fato, mas da realização do próprio ato de jurar.

ATOS LOCUCIONÁRIOS, ILOCUCIONÁRIOS E PERLOCUCIONÁRIOS

Para Austin, os atos de fala se apresentam em níveis diferentes, daí distinguir ato locucionário, ato ilocucionário e ato perlocucionário. São locucionários os atos de fala por meio dos quais se transmite uma determinada informação. Atos ilocucionários são aqueles pelos quais se atribui a uma proposição uma certa força (chamada força ilocucional): de ordem, de pergunta, de aviso, de promessa, de juramento etc. Atos perlocucionários são aqueles destinados a exercer certos efeitos no interlocutor, ou seja, são os resultados que pretendemos alcançar: assustar, convencer, agradar, aterrorizar, intimidar, caluniar, ofender, etc. Enquanto o ato ilocucionário realiza a ação que nomeia, os atos perlocucionários podem ou não alcançar o efeito que se pretende. Pelo simples fato de alguém dizer Ordeno que te cales, realizou-se uma ação (ato ilocucionário), mas o efeito que se pretendia obter (ato perlocucionário) pode não vir a ser alcançado, pois o interlocutor pode não ligar para a ordem expressa de que se cale e continuar falando.

VERBOS PERFORMATIVOS

Em certos enunciados, a força ilocucionária comumente é expressa por meio de verbos que denominaremos performativos (jurar, prometer, condenar, batizar, apostar, etc.). Por meio deles, estabelecem-se relações semânticas e pragmáticas entre texto e contexto. Quando um juiz diz ao réu Eu o condeno a uma pena de reclusão de seis anos de reclusão, ele não só diz que condena, mas efetivamente condena. Claro que esse fazer só se realiza porque o juiz está legitimado institucionalmente a exercer o ato de condenar. A mesma sentença dita por um engenheiro ou por um professor não produziria o mesmo efeito. O mesmo ocorre quando um padre ou um pastor diz Eu te batizo…, quando alguém diz a outrem Aposto cem reais como ele não vem amanhã, ou Declaro aberta a sessão. Por esses enunciados, o falante não só diz, mas também realiza as ações de batizar, apostar e abrir a sessão.

No  mundo do Direito, para reforçar que, pelo enunciado do ato, realiza-se o próprio ato (a compra, a venda, a cessão, a outorga, etc.), o enunciado vem acompanhado de indicações de local e data, testemunhas, assinaturas, etc. e, normalmente, tem como abertura a expressão pelo presente, além de expressões linguísticas cristalizadas no fecho como E, para que produza seus efeitos, E por ser expressão da verdade, Assino a presente em duas vias de igual teor e valor, etc.

Na linguagem usada por tabeliães mais antigos, há inclusive a reiteração do ato por meio de redundâncias linguísticas: vende, como de fato vendido tem; cede, como de fato cedido tem, etc. Certa vez perguntei a um tabelião por que ele usava essas construções pleonásticas, pois se o falante diz “vendo“, já está dito de modo claro e pacífico que vende, ou que está vendendo, portanto não precisaria reforçar com o como de fato vendido tem. Ele me respondeu: fazemos assim para reforçar que quem está vendendo de fato realiza a ação de vender.

Muitos verbos performativos estão no campo do que podemos chamar de atos de autoridade. Além do verbo condenar já citado, podemos destacar: absolver, promulgar, decretar, sancionar, intimar, constituir, revogar, nomear, etc. Outros, como jurar e prometer estão no campo do crer.  Quando alguém afirma Prometo lhe pagar esses cem reais amanhã, para o sucesso da promessa,  é necessário que o interlocutor creia que ela será cumprida.  Insistimos: só terão caráter performativo, caso a pessoa que os profira tenha competência para fazê-lo, ou que o interlocutor confie que quem promete ou jura irá cumprir a promessa ou o juramento.

JOHN SEARLE

Outro filósofo analítico, o americano John Searle, chama a atenção para o fato de que muitos atos ilocucionários requerem a uma instituição extralinguística para sua realização.

Há um grande número de atos ilocucionários que requerem uma instituição extralinguística, e, de modo geral, requerem que o falante e o ouvinte ocupem posições particulares naquela instituição, para que o ato seja realizado. Assim, para abençoar, excomungar, batizar, declarar culpado, marcar um fora-de-jogo numa partida de beisebol, apostar num três sem trunfo ou declarar guerra, não é suficiente que um falante qualquer diga a um ouvinte qualquer; “Eu abençoo”, “Eu excomungo”, etc. É preciso ocupar numa posição na instituição extralinguística (SEARLE, 2002, p. 10.

Nesses casos, a força ilocucionária das sentenças decorre da presença dos verbos performativos na primeira pessoa do presente do indicativo. Sentenças como O juiz condenou o réu a uma pena de seis anos de reclusãoO padre batizou o menino e Ele apostou vinte reais na vitória de seu time, não apresentam força ilocucionária, na medida em que não exprimem ações. Nesses exemplos, temos apenas descrição de ações.

Há certos textos cuja função é estabelecer ou revogar direitos, tais como procurações, testamentos, escrituras de compra e venda, de doação, de cessão de direitos, etc. Esses textos não apenas descrevem atos, mas estabelecem relações jurídicas entre pessoas, criando obrigações e deveres. Alguém, por exemplo, que nomeia outra pessoa seu procurador, confere a ela poderes para agir em seu nome, ou seja, a procuração não descreve um ato, mas realiza o ato de constituir um procurador.

3 Comentários


  1. Ernani, só tenho a agradecer sua disposição, sua gentileza, sua generosidade. Que venham outros encontros, outros ensinamentos, outros textos!

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